Brasil e EUA precisam decidir qual é o lugar do outro em sua estratégia nacional, afirma o embaixador aposentado Rubens Barbosa, que está lançando nesta terça, 27, o livro "O Dissenso de Washington - Notas de um Observador Privilegiado sobre as Relações Brasil-Estados", baseado nos cinco anos, de 1999 a 2004, em que chefiou a embaixada brasileira na capital americana.
De um lado, afirma ele, os EUA têm que mudar sua percepção sobre o Brasil. "O Brasil é visto como um país influente, moderador aqui na região, e só. Nos últimos anos cresceu, está agindo fora da região, e vai continuar nessa marcha de ocupar espaços globais. Como os EUA vão lidar com isso?"
Do outro, diz, o Brasil tem que resolver o que quer da relação com os EUA. "O que a gente quer? É cooperação? Não estou pensando só na área comercial, que depende muito da iniciativa privada. Mas há possibilidade de cooperação na área de inovação, tecnologia da informação, na qual os EUA são o país mais desenvolvido do mundo."
Abaixo, os principais trechos da entrevista de Barbosa, que passou 42 anos no Itamaraty e hoje é consultar de negócios, assessor da Fiesp (federação das indústrias de São Paulo) e editor da revista "Interesse Nacional".
Folha - Como surgiu a ideia do livro?
Rubens Barbosa - Eu sempre me preocupei com a preservação da memória. Desde que passei a ter posições de chefia no Itamaraty, no Departamento da Europa Oriental, guardei tudo. Doei o arquivo para o Cpdoc (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da FGV), com cerca de 70 mil páginas. O livro foi feito a partir de parte desses documentos, cópias de comunicações, registros pessoais, o programa de trabalho que fiz quando cheguei à embaixada e depois o relatório de gestão.
Além dos episódios da relação bilateral, o livro gira em torno de cinco fatos: a eleição do George W. Bush, que mudou a sociedade americana; o 11 de Setembro; a guerra do Afeganistão; a guerra do Iraque e a eleição de Lula no Brasil. É muito raro para um embaixador vivenciar tanta coisa importante.
O livro não pretende ser um trabalho acadêmico --não tem notas de pé de página-- nem uma análise crítica da política externa brasileira. É um relato das coisas que eu vivi lá durante cinco anos e que têm a ver com a relação Brasil-EUA.
O sr. parece acreditar que a relação entre Brasil e EUA é um rol de oportunidades perdidas. Por quê?
A relação não é tranquila, é muito conturbada ao longo de 200 anos. Há uma desconfiança mútua. A gente desconfia dos americanos porque são imperialistas, e eles desconfiam da gente porque, dos grandes países, somos o mais imprevisível. A Rússia eles sabem o que é, a China e a Índia também. O Brasil não. E eles se guiam por estereótipos, visões preconcebidas, e se surpreendem com algumas reações brasileiras, que não esperam.
Há um desconhecimento mútuo?
Na área empresarial, comercial, tem muita gente que não sabe como funciona nos EUA. Como trabalha o USTR (escritório de representação comercial da Casa Branca)? Como ele impacta os interesses brasileiros?
Do ponto de vista americano, isso é mais grave. Agora estamos começando a investir nos EUA, mas eles têm grandes interesses aqui. Perderam uma oportunidade com o crescimento do Brasil, e nós perdemos, acho eu, nos últimos oito anos, também uma oportunidade grande. Pela primeira vez na história, menos de 10% de nossas exportações vão para os EUA, que são o maior mercado do mundo. Quando cheguei lá eram 25%.
Não perdemos esse espaço comercial por causa da crise, mas antes. Perdemos porque a prioridade da política externa era a relação Sul-Sul, e os países desenvolvidos ficaram em segundo plano. Acho que a visita do Obama ao Brasil marca uma mudança, assim como a visita da Dilma a Nova York. Há áreas que não estão sendo tocadas que são muito importantes, como o acordo de bitributação, o acordo de garantia de investimentos. Antes isso favorecia empresas estrangeiras no Brasil. Agora favorece empresas brasileiras também.
Há três aspectos importantes a resolver: como conectar os interesses econômicos e comerciais do Brasil com os dos EUA; como os EUA vão lidar com o fato de o Brasil começar a ocupar espaços globais, quando antes eram vistos como um país influente e moderador apenas na região; e o Brasil tem que resolver o que quer da relação com os EUA. É cooperação?
Não estou pensando só na área comercial, que depende muito da iniciativa privada. Mas há muita possibilidade de cooperação na área de inovação, tecnologia da informação, na qual os EUA são o país mais desenvolvido do mundo. Por iniciativa deles, firmamos no governo Lula um acordo de energia e outro de cooperação em etanol, uma série de coisas que a gente não levou adiante. Então precisamos resolver o que a gente quer. Sem abdicar de soberania, sem nada. Estou falando de países que têm respeito mútuo e que defendem seus interesses.
Por que o sr. diz que os EUA são a relação mais importante para o Brasil?
Os EUA são maior mercado do mundo, estão muito adiante em termos de inovação, de patentes registradas, de descobertas. Não me refiro à parte política, mas ao contexto da relação, que é muito diversificado. Na área militar, sabemos que os americanos não cedem tecnologia e que não podemos ter nenhum tipo de transferência como temos com a Alemanha, com a França. Mas você vai nas áreas em que pode ter cooperação: meio ambiente, mudança de clima, agricultura, energia. São áreas em que o Brasil tem o que dizer, não vai lá pedir coisas, vai discutir de igual para igual.
É nesse sentido que a relação é importante porque oferece uma oportunidade enorme para darmos saltos qualitativos. O Brasil está num estágio de desenvolvimento em que a introdução de novas tecnologias propicia esse salto, e nos EUA existem áreas que não são sensíveis politicamente com as quais o Brasil poderia, através de instituições públicas ou privadas de pesquisa e desenvolvimento, ter uma aproximação maior.
Outro ponto do livro é que o sr. insiste na diferenciação do Brasil em relação aos demais latino-americanos. Por quê?
Fizemos na embaixada um trabalho para chamar a atenção deles de que o Brasil aqui na região é um país diferente. Depois que fizeram o Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) com o México, eles queriam fazer a mesma coisa com o Brasil e não foi possível, não é possível.
O Brasil é um país que, quando foi importante, como na Segunda Guerra Mundial, esteve do lado dos EUA. O que os EUA não entendem, ou não entendiam, é que o Brasil defenda seus próprios interesses. Aqui na região os países de uma maneira ou de outra se acomodam à posição americana. O Brasil não. E isso é sempre, não é só com Lula ou Fernando Henrique.
O exemplo mais dramático disso é no caso do barão do Rio Branco [chanceler de 1902 a 1912, responsável pela demarcação definitiva das fronteiras brasileiras]. O barão do Rio Branco anteviu o crescimento americano e mudou o eixo da política externa da Europa para os EUA. Mas, quando resolveu o problema do Acre, afetou diretamente os interesses dos EUA, cujo Bolivian Syndicate havia arrendado o território à Bolívia.
A única maneira de os americanos chegarem ao enclave era pelo rio Amazonas. O barão fechou o rio para a navegação internacional. Então o Brasil defende seus interesses, é menos flexível, e isso cria fricções.
O sr. detalha no livro as negociações da Alca, e diz que a proposta morreu bem antes do governo Lula. Quando foi?
Na época havia a percepção de que foi o no governo Lula que o Brasil encrespou com a Alca, mas começou com Fernando Henrique. Quando eles disseram claramente que não queriam discutir dois assuntos que eram de fundamental interesse para o Brasil, regras antidumping e subsídios, que esses assuntos não iam ser tratados na Alca, só na Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio), eu passei a achar que não era viável.
Qualquer um que não tivesse motivação ideológica a favor dos EUA ou a favor da Alca a qualquer preço, que tivesse uma posição objetiva na defesa do interesse brasileiro, viu que era impossível sair o acordo.
Quais são as principais revelações do livro?
Ele traz duas ou três coisas que ninguém sabe. Na primeira reunião com Fernando Henrique Cardoso, em março de 2001, Bush propôs que o Brasil entrasse para o G8. Fernando Henrique ficou surpreso, foi uma coisa insólita. Estávamos sempre falando de Conselho de Segurança e ele vem dizer que a gente tinha que entrar para o G8.
No mesmo encontro, Bush quase aceitou a nossa proposta para de um acordo comercial 4+1, entre os EUA e os países do Mercosul. Isso abria um caminho paralelo ao projeto original da Alca. Se não fosse a Condoleezza Rice, na época assessora de Segurança Nacional, Bush ia concordar. Ela segurou, disse que seria preciso ouvir antes o chefe do escritório comercial da Casa Branca.
O livro também detalha minha proposta de diferenciação, de colocar o Brasil num novo patamar entre os parceiros dos EUA. O Thomas Shannon, atual embaixador no Brasil, e o Richard Hass, na época diretor de Planejamento Político do Departamento de Estado, tiveram a sensibilidade de perceber que o Brasil era diferente do resto da América Latina.
Eu tinha feito para que ocorresse no final do governo Fernando Henrique, mas os americanos guardaram e deram para o Lula. Dos grupos de trabalho criados em junho de 2003 [quando foi firmada a parceria estratégica], poucos avançaram. Mas hoje você tem uma estrutura. Se a gente for fazer uma ação importante do ponto de vista tecnológico ou de cooperação em energia, não precisa criar nada. Os mecanismos estão esperando que haja vontade política dos dois lados para serem levados adiante.
O sr. é crítico em relação à retórica do presidente Lula contra os EUA, incluindo na Guerra do Iraque. No entanto, diz que ela não provocou reação explícita americana. Por quê?
Eles não queriam ter mais nenhuma frente de conflito na região. Sempre tiveram uma atitude cautelosa porque viam o Brasil como um país moderador na região, e achavam que no fundo os valores e interesses deles aqui coincidiam com os nossos.
Apesar de sua identificação com o governo Fernando Henrique, o sr. teve inicialmente uma boa relação com o governo petista. Como foi isso?
Quando eu era embaixador em Londres, houve a eleição de 1998 e o Lula, o Marco Aurélio Garcia e o Jorge Mattoso [ex-presidente da Caixa Econômica] estiveram lá. Todo mundo sabia da minha ligação com Fernando Henrique, mas depois eu soube que eles comentaram ter ficado surpresos com a maneira isenta como os tratei.
Quando eu estava em Washington e houve a campanha de 2002, eu pedi instruções a Fernando Henrique e propus tratar igual todo mundo que fosse lá. Lula ia em fevereiro, mas cancelou e mandou em maio o José Dirceu, na época presidente do PT. Depois eu vim em novembro para o Brasil, tive contato com eles para preparar a visita de dezembro, o Lula ficou lá em casa duas vezes. Quando eu conversei com ele para sair de Washington, ele me convidou para ficar no governo.
Nestes anos todos em que eu critiquei muito a política externa, o Lula não passou recibo. Sempre que me vê ele me dá um abraço. A minha crítica foi política, não era uma crítica pessoal ao Celso Amorim ou ao Lula. Era uma visão diferente, estamos numa democracia, cada um tem o direito de defender sua posição.
No livro o sr. defende o acordo para o uso pelos EUA da base espacial de Alcântara, que não passou pelo Congresso. O acordo não é prejudicial ao Brasil?
Havia no acordo quatro ou cinco pontos inaceitáveis para o PT. Eu procurei o Departamento de Estado para negociar os pontos pendentes. Para surpresa de muita gente, consegui negociar quase todos eles. Depois saí e não levaram adiante.
A discussão continua, porque foi assinado com Obama o compromisso de negociar um acordo na mesma linha e não sei como vai ser a atitude do PT. A questão é que é preciso diferenciar o que é transferência de tecnologia do que é salvaguarda tecnológica. As pessoas na época não entendiam ou não quiseram entender a diferença.
Nosso objetivo era consolidar a base de Alcântara como um centro importante de lançamento de satélites comerciais, de comunicação. Para atingi-lo, precisava ter um acordo de salvaguarda tecnológica, porque do contrário nenhuma empresa americana --e os EUA detinham na época 85% do mercado de satélites-- iria lançar de lá. Ou você tinha o acordo ou não tinha a base. Não temos até agora. Fizemos um acordo com a Ucrânia que era exatamente igual ao americano.
Mas a principal objeção não era ao fato de o acordo proibir o uso do dinheiro do aluguel da base no projeto brasileiro do VLS (veículo lançador de satélites)?
O dinheiro é fungível, você bota no Tesouro. Pode concordar com isso, mas como vai controlar? O que os críticos argumentavam é que não teríamos soberania numa parte do território porque a Alfândega não poderia abrir as caixas. Mas o que estava em discussão na época era a salvaguarda tecnológica, proteger o sigilo da patente de quem fosse lançar.
O sr. destaca no livro a importância da diplomacia pública. Como é hoje a relação com o Congresso dos EUA?
O caucus (grupo de congressistas voltado a tema específico) sobre o Brasil foi criado quando eu estava lá. Aqui pouca gente tem ideia do poder do Congresso americano, na formulação e na decisão das políticas interna e externa. É na prática um regime parlamentar, porque o presidente e os ministros todos têm que ir ao Congresso seguidamente e não fazem nada sem passar pelo Congresso.
Os assessores parlamentares nessa área externa têm muita força, então eu comecei a fazer o churrasco para eles na embaixada, que continua até hoje. Hoje é diferente, depois do Lula e da Dilma. Como eu procuro mostrar no livro, de 2004 para cá mudou a natureza da posição do Brasil no exterior. Antes era uma dificuldade abrir espaço porque, sobretudo depois do 11 de Setembro, ninguém se preocupava com a América Latina, com o Brasil.
De um lado, afirma ele, os EUA têm que mudar sua percepção sobre o Brasil. "O Brasil é visto como um país influente, moderador aqui na região, e só. Nos últimos anos cresceu, está agindo fora da região, e vai continuar nessa marcha de ocupar espaços globais. Como os EUA vão lidar com isso?"
Do outro, diz, o Brasil tem que resolver o que quer da relação com os EUA. "O que a gente quer? É cooperação? Não estou pensando só na área comercial, que depende muito da iniciativa privada. Mas há possibilidade de cooperação na área de inovação, tecnologia da informação, na qual os EUA são o país mais desenvolvido do mundo."
Abaixo, os principais trechos da entrevista de Barbosa, que passou 42 anos no Itamaraty e hoje é consultar de negócios, assessor da Fiesp (federação das indústrias de São Paulo) e editor da revista "Interesse Nacional".
Folha - Como surgiu a ideia do livro?
Rubens Barbosa - Eu sempre me preocupei com a preservação da memória. Desde que passei a ter posições de chefia no Itamaraty, no Departamento da Europa Oriental, guardei tudo. Doei o arquivo para o Cpdoc (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da FGV), com cerca de 70 mil páginas. O livro foi feito a partir de parte desses documentos, cópias de comunicações, registros pessoais, o programa de trabalho que fiz quando cheguei à embaixada e depois o relatório de gestão.
Além dos episódios da relação bilateral, o livro gira em torno de cinco fatos: a eleição do George W. Bush, que mudou a sociedade americana; o 11 de Setembro; a guerra do Afeganistão; a guerra do Iraque e a eleição de Lula no Brasil. É muito raro para um embaixador vivenciar tanta coisa importante.
O livro não pretende ser um trabalho acadêmico --não tem notas de pé de página-- nem uma análise crítica da política externa brasileira. É um relato das coisas que eu vivi lá durante cinco anos e que têm a ver com a relação Brasil-EUA.
O sr. parece acreditar que a relação entre Brasil e EUA é um rol de oportunidades perdidas. Por quê?
A relação não é tranquila, é muito conturbada ao longo de 200 anos. Há uma desconfiança mútua. A gente desconfia dos americanos porque são imperialistas, e eles desconfiam da gente porque, dos grandes países, somos o mais imprevisível. A Rússia eles sabem o que é, a China e a Índia também. O Brasil não. E eles se guiam por estereótipos, visões preconcebidas, e se surpreendem com algumas reações brasileiras, que não esperam.
Há um desconhecimento mútuo?
Na área empresarial, comercial, tem muita gente que não sabe como funciona nos EUA. Como trabalha o USTR (escritório de representação comercial da Casa Branca)? Como ele impacta os interesses brasileiros?
Do ponto de vista americano, isso é mais grave. Agora estamos começando a investir nos EUA, mas eles têm grandes interesses aqui. Perderam uma oportunidade com o crescimento do Brasil, e nós perdemos, acho eu, nos últimos oito anos, também uma oportunidade grande. Pela primeira vez na história, menos de 10% de nossas exportações vão para os EUA, que são o maior mercado do mundo. Quando cheguei lá eram 25%.
Não perdemos esse espaço comercial por causa da crise, mas antes. Perdemos porque a prioridade da política externa era a relação Sul-Sul, e os países desenvolvidos ficaram em segundo plano. Acho que a visita do Obama ao Brasil marca uma mudança, assim como a visita da Dilma a Nova York. Há áreas que não estão sendo tocadas que são muito importantes, como o acordo de bitributação, o acordo de garantia de investimentos. Antes isso favorecia empresas estrangeiras no Brasil. Agora favorece empresas brasileiras também.
Há três aspectos importantes a resolver: como conectar os interesses econômicos e comerciais do Brasil com os dos EUA; como os EUA vão lidar com o fato de o Brasil começar a ocupar espaços globais, quando antes eram vistos como um país influente e moderador apenas na região; e o Brasil tem que resolver o que quer da relação com os EUA. É cooperação?
Não estou pensando só na área comercial, que depende muito da iniciativa privada. Mas há muita possibilidade de cooperação na área de inovação, tecnologia da informação, na qual os EUA são o país mais desenvolvido do mundo. Por iniciativa deles, firmamos no governo Lula um acordo de energia e outro de cooperação em etanol, uma série de coisas que a gente não levou adiante. Então precisamos resolver o que a gente quer. Sem abdicar de soberania, sem nada. Estou falando de países que têm respeito mútuo e que defendem seus interesses.
Por que o sr. diz que os EUA são a relação mais importante para o Brasil?
Os EUA são maior mercado do mundo, estão muito adiante em termos de inovação, de patentes registradas, de descobertas. Não me refiro à parte política, mas ao contexto da relação, que é muito diversificado. Na área militar, sabemos que os americanos não cedem tecnologia e que não podemos ter nenhum tipo de transferência como temos com a Alemanha, com a França. Mas você vai nas áreas em que pode ter cooperação: meio ambiente, mudança de clima, agricultura, energia. São áreas em que o Brasil tem o que dizer, não vai lá pedir coisas, vai discutir de igual para igual.
É nesse sentido que a relação é importante porque oferece uma oportunidade enorme para darmos saltos qualitativos. O Brasil está num estágio de desenvolvimento em que a introdução de novas tecnologias propicia esse salto, e nos EUA existem áreas que não são sensíveis politicamente com as quais o Brasil poderia, através de instituições públicas ou privadas de pesquisa e desenvolvimento, ter uma aproximação maior.
Outro ponto do livro é que o sr. insiste na diferenciação do Brasil em relação aos demais latino-americanos. Por quê?
Fizemos na embaixada um trabalho para chamar a atenção deles de que o Brasil aqui na região é um país diferente. Depois que fizeram o Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) com o México, eles queriam fazer a mesma coisa com o Brasil e não foi possível, não é possível.
O Brasil é um país que, quando foi importante, como na Segunda Guerra Mundial, esteve do lado dos EUA. O que os EUA não entendem, ou não entendiam, é que o Brasil defenda seus próprios interesses. Aqui na região os países de uma maneira ou de outra se acomodam à posição americana. O Brasil não. E isso é sempre, não é só com Lula ou Fernando Henrique.
O exemplo mais dramático disso é no caso do barão do Rio Branco [chanceler de 1902 a 1912, responsável pela demarcação definitiva das fronteiras brasileiras]. O barão do Rio Branco anteviu o crescimento americano e mudou o eixo da política externa da Europa para os EUA. Mas, quando resolveu o problema do Acre, afetou diretamente os interesses dos EUA, cujo Bolivian Syndicate havia arrendado o território à Bolívia.
A única maneira de os americanos chegarem ao enclave era pelo rio Amazonas. O barão fechou o rio para a navegação internacional. Então o Brasil defende seus interesses, é menos flexível, e isso cria fricções.
O sr. detalha no livro as negociações da Alca, e diz que a proposta morreu bem antes do governo Lula. Quando foi?
Na época havia a percepção de que foi o no governo Lula que o Brasil encrespou com a Alca, mas começou com Fernando Henrique. Quando eles disseram claramente que não queriam discutir dois assuntos que eram de fundamental interesse para o Brasil, regras antidumping e subsídios, que esses assuntos não iam ser tratados na Alca, só na Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio), eu passei a achar que não era viável.
Qualquer um que não tivesse motivação ideológica a favor dos EUA ou a favor da Alca a qualquer preço, que tivesse uma posição objetiva na defesa do interesse brasileiro, viu que era impossível sair o acordo.
Quais são as principais revelações do livro?
Ele traz duas ou três coisas que ninguém sabe. Na primeira reunião com Fernando Henrique Cardoso, em março de 2001, Bush propôs que o Brasil entrasse para o G8. Fernando Henrique ficou surpreso, foi uma coisa insólita. Estávamos sempre falando de Conselho de Segurança e ele vem dizer que a gente tinha que entrar para o G8.
No mesmo encontro, Bush quase aceitou a nossa proposta para de um acordo comercial 4+1, entre os EUA e os países do Mercosul. Isso abria um caminho paralelo ao projeto original da Alca. Se não fosse a Condoleezza Rice, na época assessora de Segurança Nacional, Bush ia concordar. Ela segurou, disse que seria preciso ouvir antes o chefe do escritório comercial da Casa Branca.
O livro também detalha minha proposta de diferenciação, de colocar o Brasil num novo patamar entre os parceiros dos EUA. O Thomas Shannon, atual embaixador no Brasil, e o Richard Hass, na época diretor de Planejamento Político do Departamento de Estado, tiveram a sensibilidade de perceber que o Brasil era diferente do resto da América Latina.
Eu tinha feito para que ocorresse no final do governo Fernando Henrique, mas os americanos guardaram e deram para o Lula. Dos grupos de trabalho criados em junho de 2003 [quando foi firmada a parceria estratégica], poucos avançaram. Mas hoje você tem uma estrutura. Se a gente for fazer uma ação importante do ponto de vista tecnológico ou de cooperação em energia, não precisa criar nada. Os mecanismos estão esperando que haja vontade política dos dois lados para serem levados adiante.
O sr. é crítico em relação à retórica do presidente Lula contra os EUA, incluindo na Guerra do Iraque. No entanto, diz que ela não provocou reação explícita americana. Por quê?
Eles não queriam ter mais nenhuma frente de conflito na região. Sempre tiveram uma atitude cautelosa porque viam o Brasil como um país moderador na região, e achavam que no fundo os valores e interesses deles aqui coincidiam com os nossos.
Apesar de sua identificação com o governo Fernando Henrique, o sr. teve inicialmente uma boa relação com o governo petista. Como foi isso?
Quando eu era embaixador em Londres, houve a eleição de 1998 e o Lula, o Marco Aurélio Garcia e o Jorge Mattoso [ex-presidente da Caixa Econômica] estiveram lá. Todo mundo sabia da minha ligação com Fernando Henrique, mas depois eu soube que eles comentaram ter ficado surpresos com a maneira isenta como os tratei.
Quando eu estava em Washington e houve a campanha de 2002, eu pedi instruções a Fernando Henrique e propus tratar igual todo mundo que fosse lá. Lula ia em fevereiro, mas cancelou e mandou em maio o José Dirceu, na época presidente do PT. Depois eu vim em novembro para o Brasil, tive contato com eles para preparar a visita de dezembro, o Lula ficou lá em casa duas vezes. Quando eu conversei com ele para sair de Washington, ele me convidou para ficar no governo.
Nestes anos todos em que eu critiquei muito a política externa, o Lula não passou recibo. Sempre que me vê ele me dá um abraço. A minha crítica foi política, não era uma crítica pessoal ao Celso Amorim ou ao Lula. Era uma visão diferente, estamos numa democracia, cada um tem o direito de defender sua posição.
No livro o sr. defende o acordo para o uso pelos EUA da base espacial de Alcântara, que não passou pelo Congresso. O acordo não é prejudicial ao Brasil?
Havia no acordo quatro ou cinco pontos inaceitáveis para o PT. Eu procurei o Departamento de Estado para negociar os pontos pendentes. Para surpresa de muita gente, consegui negociar quase todos eles. Depois saí e não levaram adiante.
A discussão continua, porque foi assinado com Obama o compromisso de negociar um acordo na mesma linha e não sei como vai ser a atitude do PT. A questão é que é preciso diferenciar o que é transferência de tecnologia do que é salvaguarda tecnológica. As pessoas na época não entendiam ou não quiseram entender a diferença.
Nosso objetivo era consolidar a base de Alcântara como um centro importante de lançamento de satélites comerciais, de comunicação. Para atingi-lo, precisava ter um acordo de salvaguarda tecnológica, porque do contrário nenhuma empresa americana --e os EUA detinham na época 85% do mercado de satélites-- iria lançar de lá. Ou você tinha o acordo ou não tinha a base. Não temos até agora. Fizemos um acordo com a Ucrânia que era exatamente igual ao americano.
Mas a principal objeção não era ao fato de o acordo proibir o uso do dinheiro do aluguel da base no projeto brasileiro do VLS (veículo lançador de satélites)?
O dinheiro é fungível, você bota no Tesouro. Pode concordar com isso, mas como vai controlar? O que os críticos argumentavam é que não teríamos soberania numa parte do território porque a Alfândega não poderia abrir as caixas. Mas o que estava em discussão na época era a salvaguarda tecnológica, proteger o sigilo da patente de quem fosse lançar.
O sr. destaca no livro a importância da diplomacia pública. Como é hoje a relação com o Congresso dos EUA?
O caucus (grupo de congressistas voltado a tema específico) sobre o Brasil foi criado quando eu estava lá. Aqui pouca gente tem ideia do poder do Congresso americano, na formulação e na decisão das políticas interna e externa. É na prática um regime parlamentar, porque o presidente e os ministros todos têm que ir ao Congresso seguidamente e não fazem nada sem passar pelo Congresso.
Os assessores parlamentares nessa área externa têm muita força, então eu comecei a fazer o churrasco para eles na embaixada, que continua até hoje. Hoje é diferente, depois do Lula e da Dilma. Como eu procuro mostrar no livro, de 2004 para cá mudou a natureza da posição do Brasil no exterior. Antes era uma dificuldade abrir espaço porque, sobretudo depois do 11 de Setembro, ninguém se preocupava com a América Latina, com o Brasil.
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