Roberto Amaral é vice-presidente Nacional do PSB
A segunda década do terceiro milênio apresenta-se extraordinariamente desafiadora, quando paira sobre todo o mundo o espectro da crise do capitalismo, por ele mesmo engendrada. Crise econômica que cedo, a partir da Europa, constrói desdobramentos políticas e institucionais, de início desestabilizando os países da Comunidade Econômica Européia (nomeadamente Portugal, Grécia, Itália e Espanha), chegando a mesmo a ameaçar a sobrevivência do euro e pôr em xeque o Tratado de Maastrich. A crise ultrapassa o território de seu epicentro norte-americano para contaminar todo o mundo. Para os que gostam de consultar a História, ela relembra as turbulências desencadeadas pelo crash da Bolsa de Nova Iorque (1929), que se resolveu na II Guerra Mundial com a consolidação da hegemonia dos EUA, anunciada desde o início do século. Consabidamente, a história não se repete, a não ser como tragédia e farsa, mas podemos afirmar que vivemos já uma ‘III Guerra Mundial’. Não se realizou o temido conflito OcidentexOriente, URSSxEstados Unidos, muito menos nossa civilização e o planeta foram destruídos pela hecatombe atômica. Diferentemente da tragédia de 1939-1945, a Grande Guerra de nossos dias é uma coleção de conflitos difusos operados mediante a associação militar intervencionista dos grandes países capitalistas, muitas vezes mascarada pela OTAN, como na antiga Iugoslávia, nos Bálcãs, no Afeganistão, no Iraque e, mais recentemente, pelos raids franco-ingleses sobre a Líbia. Esse militarismo agressivo se apresenta travestido dos mais palatáveis rótulos, como ‘intervenção humanitária’, luta contra o terrorismo, combate a armas de destruição em massa ou ‘defesa’ de regimes democráticos contestados domesticamente. Na verdade, o objeto é a destruição de adversários e a tomada de territórios e riquezas estratégicos, fundamentais para a geopolítica do imperialismo, que guerreia preventivamente, à ausência de desafio militar. São atingidas as populações civis e bens de caráter civil, as estruturas dos países são arrasadas para serem reconstruídas com os recursos dos próprios vencidos. Mundo em crise, esquerda em crise. O dramático, em face da crise estrutural do capitalismo (e não apenas crise do neoliberalismo ou da hiperacumulação financeira especulativa), é a apatia da esquerda socialista. Ainda com dificuldades para compreender a débâcle do ‘socialismo real’, não foi capaz de fugir da armadilha ideológica da direita, vitoriosa quando ironicamente desabam as pilastras do capitalismo -- a introjeção da falácia do fim da história--, e construir uma alternativa compreensível pelas grandes massas e exequível no horizonte das atuais gerações. Ao contrário, em alguns casos quedou-se na inação, para, em outros muitos, bater em retirada, como demonstra o destino no qual se imolaram os antigos grandes partidos comunistas, tanto do Leste, onde aparentemente estavam no poder, quanto do Ocidente. Diante dos episódios da ‘Primavera árabe’ e do ‘Ocupem Wall Street’, que se espalhou por todo os EUA e o mundo, a esquerda quedou-se perplexa, presa por um verdadeiro círculo de giz caucasiano, composto pelo que Zizek descreve como resultado do fim do ‘socialismo real’: “o saudosismo da velha ordem, o populismo nacionalista de direita e uma paranóia anticomunista renovada e diferida”. Nada obstante o estrondoso fracasso do capitalismo – fracasso econômico, político e moral-- grande parte da imprensa internacional – o caso brasileiro é escandaloso — ainda se move segundo as regras da falecida Guerra Fria, gerando o discurso único que parece provocar rachaduras na formação ideológica dos doutrinadores da esquerda, assustada e pessimista quando sua essência é crer e realizar utopias. O fato objetivo, seja qual for o fenômeno detonador, é que o sistema não conhece oposição. Nunca será demais lembrar a que frangalhos foram reduzidas organizações de massa como o Partido Comunista Francês e, principalmente, o outrora tão promissor Partido Comunista Italiano, ‘o maior partido de massas do Ocidente’, inspiração da frustrada promessa do ‘eurocomunismo’. Nas pegadas dos comunistas ortodoxos caminharam os partidos socialistas e socialdemocratas como o Partido Socialista Francês, o Partido Socialista Português, e o Partido Socialista Operário Espanhol, apenas poucos mas significativos exemplos de renúncia a objetivos revolucionários. Na verdade, esses partidos transitaram da esquerda para o conservadorismo e, em alguns casos, terminaram no campo da direita. Lembremos apenas o triste destino do Partido Trabalhista inglês. Mas esses exemplos não encerram a tragédia toda, pois são exatamente os partidos de centro-esquerda que estão operando a política suja do neoliberalismo, impondo a suas populações o extenso catecismo das medidas recessivas de sempre, a redução dos direitos trabalhistas e previdenciários, a crescente desigualdade de renda e cortes nos programas sociais, conquistas alcançadas ao custo de longas lutas sociais que compreenderam, de par com a extrema exploração do braço humano, a repressão, o cárcere e o assassinato de milhões de trabalhadores em todo o mundo. Nem Margaret Thatcher faria melhor. Mesmo para os governos de esquerda, limitados pelas suas circunstâncias, a missão histórica se reduz à correção de falhas do sistema, jamais de questioná-lo, muito menos de construir uma alternativa. Ataca-se a forma, ignora-se a essência. O confronto tão pouco é exercido pelos partidos de esquerda, os quais, assim, renunciam ao seu fim político. Invertendo a ordem clássica, e cumprindo a necessidade de defender suas administrações, terminam no centro do governo e à direita do movimento social. Na ausência dos partidos, agem as massas. As praças "Os jovens estão tomando as ruas, em parte, porque não acreditam mais nas urnas”. Primeiro foi o Egito, com a transformação da Praça Tahir numa ágora democrática onde o povo se reuniu – aparentemente sem nenhuma convocação de ordem partidária – para exigir o fim de uma velha ditadura por muitos anos sustentada pelos EUA e Israel como antídoto a qualquer projeto, democrático ou não, que pudesse lembrar a história de Gamal Abdel Nasser. Formados basicamente por jovens da classe-média, outros movimentos populares explodiram na Jordânia, na Tunísia (onde Sarkozy não pôde manter Ben Ali no poder) e no Iêmen. Todos se batem contra ditaduras ou Estados autoritários, reclamando direitos sociais, econômicos e políticos. Na Síria o ditador ainda resiste (escrevo em novembro) com o povo ocupando as ruas, e na Líbia, com o apoio decisivo dos bombardeios da OTAN, foi desmontado o regime de Kadafi, arrasado o país e finalmente, com a preciosa ajuda da aviação francesa, assassinado o ditador, com requintes de bestialidade ocidental. Ainda é cedo para prever a profundidade das reformas, pois a deposição do ditador é condição necessária mas não suficiente para assegurar o avanço político, se as reformas estruturais não são levadas a cabo. Esta, porém, é a tendência daqueles movimentos os quais, embora mobilizando as massas, não foram galvanizados por propostas e programas concretos. A ausência de novas formações políticas, apontando para a nova organização social, condena esses movimentos ao esvaziamento. Na ausência da política o proscênio é ocupado ora por juntas militares, ora por seitas fundamentalistas, às vezes mesmo em conjunção, abrindo espaço para Estados teológicos e autocráticos. O papel da ‘irmandade muçulmana’ no Egito não deve ser considerado irrelevante. Os movimentos de massas que se espalham como rastilho de pólvora, sejam os levantes da ‘Primavera árabe’, por estudar, sejam os protestos contra as medidas recessivas impostas aos povos dos países devedores (Grécia, Espanha, Portugal, Itália) pelo alcorão monetarista a serviço da banca internacional, sejam já os protestos anticapitalistas difusos (EUA, Inglaterra, Alemanha, França, Japão, Filipinas, Bósnia, Austrália,...), mais ou menos na sequência do ‘Ocupe Wall Street’, são, aparentemente, erupções espontâneas e voluntaristas, de uma forma ou de outra sem a participação dos partidos e dos políticos, postos à margem como material inservível. Até aqui sem bandeiras definidas, esses movimentos parecem unificados por uma reação de fundo moral e ético que se manifesta no discurso contra as desigualdades e o sistema financeiro privado, para o qual pedem regulação. Esses protestos chegam mesmo à China (Hong Kong) e ali também mais claramente do que em qualquer outra parte, sem a presença de organizações partidárias. Se não há indicação da existência de mecanismos políticos de convocação popular, convergem os primeiros observadores a explicar as mobilizações de massa mediante o papel, ainda não seguramente medido, das ‘redes sociais’, as mesmas que estariam sendo usadas com idêntico sucesso nos chamamentos do ‘OcupeWall Street’. A exclusão dos partidos é fenômeno derivado da renúncia destes à política e à contestação. Talvez até por decorrência da orfandade político-ideológica, setores do pensamento de esquerda abandonam a resistência e a militância, abalados pelo que Hegel chamava de ‘hipocondria do antipolítico’, caracterizada pelo desalento e a depressão que normalmente se seguem a uma grande derrota. Esta de agora é, ainda, o autodesmoronamento da URSS. A angustia de uns leva à inação; noutros setores transforma-se na auto-entrega aos ditames ideológicos do discurso único e aos apelos materiais do statu quo. As atuais gerações vêem seus tempos se dissiparem, e quando caminham na direção do horizonte esse parece se afastar, como uma maldição. Como o futuro transforma-se numa quimera, resta viver o presente, a qualquer custo, a qualquer preço. Inclusive ao preço da renúncia aos seus próprios valores. Por isso mesmo praças ocupadas são uma resposta ao agravamento das desigualdades impostas pelo capitalismo em sua fase monopolista, mas também iluminam o desapreço dos jovens ao fazer da política, à gelatina ideológica dos partidos e aos políticos que não foram capazes de resolver seus problemas. O desalento, bem servido pela grande imprensa, leva ao desencanto com os regimes democráticos, pois as grandes massas não mais vêem a democracia representativa e o processo eleitoral como alternativas. E os Murdoch, e os Civita sabem disso, como também sabem quais são as conseqüências inevitáveis da desmoralização da política. Esta, aliás, é a razão de tanto investirem neste projeto. Diante da crise, e da incapacidade de os partidos a enfrentarem, construir e liderar a defesa de alternativas, as novas gerações, que crescem sob a crise do capitalismo, se sentem desamparadas. Mas se não encontram o apoio das organizações de esquerda, nem delas colhem um projeto político, também e felizmente não se deixam dominar pela angústia e pelo niilismo; avançam como podem e sabem: marcham, ocupam as ruas, protestam. Mas a rebeldia necessária não é tudo. É evidente que o “Ocupe Wall Street” é um extraordinário avanço qualitativo diante de Woodstock, mas pode cair no vazio se o protesto não se transformar em projeto revolucionário, e isto depende de condução política, que depende de organização política, o que, nas circunstâncias, é um objetivo ainda muito difícil de operar. E assim e por tudo isso, a crise do capitalismo se desenvolve sem sinais de mudanças, quer na economia, quer na política, nada obstante a estagnação e o desemprego. A experiência na America Latina Já antes da crise de 2008, nosso Continente, na sequência do desmantelamento das ditaduras, conhecia dois fenômenos notáveis e contemporâneos, a saber: a) a emergência dos movimentos populares (trazendo em seu bojo a afirmação da democracia eleitoral e a eleição de governos populares); e b) a recuperação econômica, à margem das regras do Consenso de Washington. A resistência social. Embora a derrubada das ditaduras militares e dos governos autoritários, abrindo caminho para a retomada da democracia, tenha sido levada a cabo por movimentos de massa com destacada presença das esquerdas locais -- o papel de liderança dos partidos de esquerda e socialistas no processo político e político-eleitoral constitui exceção. Em quase toda a América do Sul a ascensão das massas e a conquista eleitoral se fizeram sob o comando de grandes lideranças populares, ora sem vinculações partidárias, ora elas próprias maiores que seus partidos, o que pode anunciar percalços à continuidade da opção democrático-popular, quando os avanços políticos e os processos sociais ficam a depender, não de uma organização partidária, não de um programa para o qual se conquistou a adesão da sociedade, mas dependem pura e exclusivamente do desempenho de um líder. Ilustro esta afirmação lembrando a trajetória de Hugo Chávez. Por outro lado, a tragédia biológica, com a qual nunca contam os lideres carismáticos, pode dar fim àqueles movimentos que não conseguirem se institucionalizar e construir novas lideranças. A ausência dos partidos é igualmente a característica dos fortes movimentos estudantis do Chile que começam a se reproduzir na Colômbia que, aliás, acaba de eleger um ex-guerrilheiro prefeito de Bogotá. Na pátria de Allende há mesmo, por parte das lideranças estudantis com apoio na opinião pública, um ostensivo desapreço pelos partidos, independentemente de coloração ideológica e de suas respectivas histórias, pois todos são igualmente responsabilizados pelas mazelas denunciadas. Derrotada nas urnas pela direita deSebastian Piñera, a Concertação é chamada pelos estudantes a explicar as reformas que deixou de fazer. A democracia se consolida e avança na Argentina (com os governos populares dos Kirchner a caminho do terceiro mandato), no Uruguai (com a Frente Ampla), no Paraguai com a eleição de Lugo, na Bolívia com Evo Morales, no Equador com Rafael Correia, no Peru com Humala, na Venezuela com as sucessivas eleições de Hugo Chávez e na Nicarágua com Ortega. No Brasil, o governo popular de centro-esquerda alcança seu terceiro mandato consecutivo. Como garantir a continuidade desse processo progressista naqueles países ricos de lideranças personalistas mas pobres na organização política das grandes massas? A resistência ao Consenso de Washington. Da Europa distingue-se a América Latina pela majoritária resistência, em face da crise econômica internacional, às prescrições do ‘Consenso de Washington’, que tanto encantou e ainda hoje encanta nossos economistas e a imprensa colonizada. Pois foi reativando o papel indutor do Estado, promovendo a abertura do crédito (impensável sem os bancos públicos, no caso brasileiro) e estimulando o consumo, que nossos países responderam aos abalos internacionais, e ao cabo de três anos o Continente apresenta indicadores de crescimento do PIB, em contraste com a recessão que se instalou na Europa. Brasil e Argentina são dois exemplos da resistência vitoriosa ao neoliberalismo, como Bolívia e Equador podem ser os melhores exemplos de emergência dos movimentos de massa. Brasil 1. O Brasil e a crise internacional O exemplo brasileiro, na crise de 2008, foi paradigmático com a corajosa decisão de nosso governo de rejeitar a recessão e investir no mercado interno, o que foi levado a cabo por Lula e tem continuidade no Governo Dilma, contaminada porém sua administração pelos receios de uma recidiva inflacionária, donde seu comportamento cauteloso em face dos desdobramentos insondáveis da crise internacional, os quais incluem a expectativa de queda de nossas exportações. Daí, prometendo relaxar o mercado interno (facilitar o crédito e aumentar os investimentos públicos), a reclamada política de contínua embora ainda lenta redução das taxas de juros, assegurando o hoje ameaçado crescimento do pais. Essa política, porém, ainda não se fez acompanhar do controle do câmbio, fórmula para salvar a indústria nacional manufatureira em face da concorrência do mercado internacional, tornada ainda mais difícil com a artificial desvalorização do dólar e o quase dumping dos produtos chineses. Os efeitos da crise, porém, já chegaram ao Brasil e seu primeiro indicador é a desaceleração da atividade econômica, com a queda da produção industrial e do consumo de bens de capital. As incertezas do mercado internacional têm levado à redução dos investimentos privados, alimentando o círculo vicioso. As comodites, hoje a principal base de nossas exportações, continuarão relevantes, porém em patamar de preço e fluxo menores, sem nenhuma expectativa de crescimento das exportações de nossos manufaturados. Nesse cenário de refluxo da economia internacional, os produtos agrícolas tornar-se-ão mais atrativos que os minerais e poderemos ser beneficiados pela provável carência de proteínas pela China. Donde a possibilidade de aumentarmos nossas exportações de carne, frango... Finalmente, e é com esta perspectiva que devemos contar, a concorrência será cada vez mais acirrada, e por vezes desleal, em todos os mercados. Esta é a conseqüência do encontro da retração econômica européia com a lenta recuperação dos EUA, e as ameaças de desaceleração do crescimento da China, com a evidente queda de suas importações e a necessidade de aumentar as exportações. Nossos estrategistas não devem contar com a garantia do crescimento, se não forem tomadas, no curto prazo, medidas de aquecimento, pois o quadro de hoje é de queda rápida da taxa de investimento. Se nada for feito corremos o sério risco de estagnação em 2012, preço que nos será cobrado pelos equívocos das políticas de agressividade fiscal e monetária dos primeiros meses deste ano. São muitos os desafios, desde o enfrentamento da dívida pública ao chamado ‘custo Brasil’, que envolve as escandalosas deficiências de logística e infraestrutura. Temos ainda problemas decorrentes da redução da taxa de fecundidade associada à inversão da composição etária, com graves repercussões sobre as políticas públicas. Sem falar na crise do Estado, a crise de sua legitimidade e sua crassa ineficiência agravada pelo ataque neoliberal, enfraquecendo-o em seu papel de indutor da economia e desaparelhando-o para o enfrentamento das grandes corporações transnacionais, que já respondem por 50% do PIB mundial. 2. O Brasil e a crise dos Partidos Relativamente aos partidos, o Brasil não constitui exceção digna de nota. Nada obstante possuirmos, em face de nossos vizinhos, e certamente com a mencionada exceção do Chile e da uruguaia Frente Ampla, um dos mais consolidados sistema de partidos (consolidado não quer dizer nem eficiente nem legítimo), é sabido que a vitória popular nas eleições de 2002 foi catapultada pela liderança do presidente Lula. E foi essa liderança que assegurou a sucessão com Dilma Rousseff, em que pese à longa história dos movimentos sociais brasileiros, da acumulação de forças representada pela história das forças democráticas, socialistas e comunistas. Mas nossas vitórias, e a ‘necessidade de assegurar a governabilidade’, ameaçada em 2005, cobraram das lideranças do governo a construção de uma base partidário-parlamentar tão ampla (com evidente reflexo na composição do governo), que, garantindo a reclamada estabilidade, limitou sensivelmente a capacidade de promover mudanças estruturais. Mas só uma base parlamentar assim heterogênea para ser tão grande conseguiria dar sustentação a um governo que em menos de dez meses tem cinco de seus ministros, sucessivamente demitidos pela imprensa. Às esquerdas (assim mesmo no plural), faltou (e falta) reflexão. Sem instrumentos para compreender a realidade na qual eram chamados a atuar, nossos partidos foram consumidos pela acrítica ocupação do aparelho do Estado, com a renúncia a qualquer transformação de qualidade. Recebemos um Estado desmantelado pelo neoliberalismo, governamos com ele, e, preservando-o tal qual o recebemos, assim vamos entregá-lo a nossos sucessores. Um Estado sem vocação para a defesa do bem-comum, imune à emergência dos pobres, desafeito à transparência e ao aprofundamento da democracia. Um Estado desaparelhado para o fazer, principalmente quando este fazer diz respeito aos interesses das camadas mais pobres da população. Um Estado desaparelhado para a defesa de nosso território. Um Estado ainda garroteado pelo sistema financeiro privado e amarrado por uma burocracia autônoma descompromissada com os interesses nacionais. Um Estado a serviço da classe dominante que ignora os projetos estratégicos nacionais, impávido diante dos reclamos sociais e do pleito por aquelas reformas estruturais, que, perfurando a epiderme, atinjam qualitativamente o regime. Um Estado servido por um Legislativo que não legisla e um Judiciário que não julga, ambos acusados de severos desvios éticos. Ao invés de marcarmos nossas diferenças, terminamos sem cor no caleidoscópio ideológico da ‘base’ do governo. Há pelo menos uma conseqüência a identificar: o esgarçamento doutrinário de nossos partidos, construindo o desapreço popular. As linhas programáticas revelam-se condicionadas pelo pragmatismo da realpolitik, que põe esquerda e direita no mesmo campo de disputa eleitoral, no governo e na sociedade, com armas e ainda éticas distintas, embora administradores conservadores e de esquerda no mesmo governo sejam acusados dos mesmos equívocos. Para a opinião pública, os partidos e suas lideranças terminam dramaticamente confundidos. Essa construção esquizofrênica é responsável pelo agravamento da crise da representação, que, desvinculando da vontade da soberania popular o exercício do mandato, abre caminho para a crise funcional e ética do Poder Legislativo, na qual se alimenta a direita impressa. Sem compreender a real crise do sistema político-eleitoral, e, com ela, num círculo vicioso, o agravamento da crise dos partidos, a esquerda, no Brasil, majoritariamente, renunciou à formulação de uma inadiável reforma política, para consumir-se na defesa de uma reforma eleitoral que ao fim e ao cabo prometia simplesmente reduzir os espaços da democracia, e abrir caminho para a hegemonia dos grandes partidos, o primeiro passo do acalentado sonho das elites brasileiras: o bipartidarismo reacionário. 3. O Brasil e os movimentos sociais Durante a ditadura militar e em oposição a ela, o Brasil assistiu a um tão amplo quanto inusitado processo de mobilização de massas, seja pelo ressurgimento do movimento sindical, seja pela luta pela anistia, seja pela defesa dos direitos humanos ou pelas eleições diretas para presidente. É verdade, porém, que o extraordinário movimento das ‘diretas-já’ desembarcou no colégio eleitoral da ditadura, que elegeu Tancredo e levou Sarney à Presidência. Construímos a liberdade sindical mas nossas Centrais foram dominadas pelo burocratismo de esquerda. Por fim, só recentemente conseguimos instalar a Comissão da Verdade, para oficialmente registrar os crimes da ditadura, cujos operadores continuam anistiados e impunes. A inserção da esquerda com tarefas de mando na administração do Estado, quando mais carecia de sustentação popular, terminou provocando a desmobilização de grande parte desses movimentos, cuja exceção digna de nota é o MST, sistemática e compulsivamente “criminalizado” pelos meios de comunicação, e por um Poder Judiciário que jamais renunciou ao seu papel reacionário na luta de classes. Por outro lado, os partidos de esquerda não tiveram competência para compreender e encorajar esses movimentos, cuja contribuição é fundamental para o permanente aprofundamento da ordem democrática e para a garantia e ampliação de políticas públicas em prol da maioria da população. Mantida sua autonomia em relação aos movimentos sociais, quaisquer que sejam seus objetivos, a tarefa fundamental da esquerda é abrir e manter canais de relações e cooperação com a sociedade, de modo que suas reivindicações e propostas sejam incorporadas pelas estratégias partidárias. Nossa experiência, porém, não é estimulante, pois contribuiu (talvez inevitavelmente) para o refluxo do movimento sindical e do movimento social em termos gerais, um e outros muitas vezes utilizados como correia de transmissão dos interesses dos partidos. A crise da socialdemocracia Repetindo histórias passadas, a crise não tem aberto espaço para as conquistas socialistas. Ao contrário, o panorama contemplado é de desmoralização da socialdemocracia na Grécia (por ela governada no auge da crise por intermédio do PSOK, partido socialista; impotente diante do desastre, foi substituído por um governo de ‘união nacional’ formado basicamente pela ultra-direita, e ainda deverá perder as próximas eleições para o direitista Mariano Rajoy), na Espanha (governada por um PSOE massacrado nas eleições nas eleições de novembro)e em Portugal (governado até há pouco pelo Partido Socialista, e por isso mesmo derrotado pela direita na última eleição). Na Itália, a esquerda orgânica se autodesconstituiu; na Inglaterra os partidos Trabalhista e Conservador desempenham o mesmo papel. Na Alemanha o socialdemocrata SPD não se diferencia da CDU (democracia cristã, de Merkel). Em nosso campo apenas o Die linke (A esquerda), uma dissidência do SPD, responsável por algo como 7/8% do eleitorado. O fracasso da esquerda européia pode deitar raízes nas consequências até psicológicas da crise do ‘socialismo real’ que terminou derruindo organizações antes portentosas como os já referidos PCI e PCF, e abalando o movimento socialista em todo o mundo. Mas, passado o pesadelo -- já estão longe a simbólica queda do ‘Muro de Berlim’ e a capitulação da URSS ---, e diante da crise do capitalismo, não há como explicar o refluxo das ideias e das ações da esquerda em todo o mundo. O fato objetivo é que essa esquerda, mesmo em face da crise, tem, renunciado à crítica ao capitalismo, à defesa das teses do socialismo, ainda que fosse de um socialismo revisitado, e ao dever histórico de construção de um programa alternativo, reclamado pelas grandes massas, já nas ruas, independentemente do seu chamamento. Relembremos Lênin: jamais haverá uma crise final do capitalismo, ao menos que haja uma alternativa. Desfeita a fantasia do ‘socialismo’ real, não nos foi dado reconstruir nossas teses, e mesmo a denúncia do capitalismo, malgrado sua escandalosa disfunção, refluiu. Daí o niilismo de uns, o pessimismo que justifica a inação; de outra parte a adesão às teses do neoliberalismo e a filiação à socialdemocracia, a qual, todavia, transitou do centro para a direita. Confundem-se pragmatismo e renúncia, que procura justificativa no discurso de que a ‘revolução acabou’, com o reconhecimento da vitória final do mercado, com a revisão do conceito de Estado e mesmo de soberania nacional. A desestruturação dos partidos e o enfraquecimento dos movimentos de massas seriam o passo seguinte e inevitável. Esta questão se torna mais grave, agônica e aguda naqueles países nos quais partidos de esquerda assumiram governos. Neles, de um lado não podem realizar seus programas, porque não promoveram qualquer revolução, restando-lhes como alternativa de governabilidade, firmar um pacto com a grande burguesia. O desafio é alcançar grandes desempenhos no jogo capitalista a saber, mostrar que a esquerda pode administrar tão bem, ou melhor, que a direita, ainda que para essa avaliação tenham que ser postas de lado questões de qualidade. Ponto final O futuro de nossos países depende exclusivamente de nossa política, a qual, contrariando a ladainha dos economistas mediáticos, depende da continuidade do Estado indutor, da abertura do crédito (alcançando principalmente o consumo popular), dos investimentos públicos, do aumento da produção industrial, da regular queda do juros e da desvalorização do câmbio. E do esforço para aumentar e diversificar nossas exportações, dando-se atenção primordial para o desenvolvimento da America do Sul, do qual nosso país deve ter a inteligência de ser um agente. Toda crise – e os grandes abalos eclodem a intervalos variáveis- - tem sua história própria e cada uma gera suas próprias conseqüências O fenômeno comum é a gestação de um novo mundo, com novas relações sociais e econômicas e uma nova geopolítica. Esse novo mundo, cujos contornos não sabemos prever, espicaçado por inovações tecnológicas e alterações comportamentais, oferecerá aos seus contemporâneos a possibilidade de escolha. Enfim, de fazer História. Tudo depende do que nossos povos decidam fazer da política. Em sua conhecidíssima réplica a Feuerbach, Karl Marx lembrava que o fundamental não era mais explicar o mundo, mas transformá-lo. Agora, é preciso dizer que, para mudar, é necessário conhecer. Conhecer não mais para continuar explicando, mas para intervir, alterando o sentido dos acontecimentos e buscando a construção de uma nova ordem política e de uma ordem econômica voltadas para os interesses da maioria. Conhecer de todas as formas, a partir da reflexão, por sem dúvida, mas conhecer também mediante a participação, a organização, o ativismo, a militância. Conhecer para transformar. Os jovens que ocupam Wall Street estão realizando uma profunda reflexão sobre o sistema econômico de seu país e, ao mesmo tempo, oferecendo uma lição de práxis ao resto da humanidade. Quando a esquerda socialista parece haver ensarilhado as armas, esses jovens estão a dizer que ‘mudar é possível’. Mudar para o quê ainda não sabem, mas já deram o primeiro e essencial passo. A análise ao significado prático dessa rebeldia é outra coisa. No momento registramos tão simplesmente o rompimento com a inação. As pessoas aprendem com suas próprias experiências. Em outras palavras: queremos crer que a ação direta começará a construir respostas às dúvidas. * Roberto Amaral é cientista político, vice-presidente nacional do PSB, ex-ministro da Ciência e tecnlogia, ex-diretor-presidente da Alcântara Cyclone Space. |