Se ocorrer, default americano não será inédito; para a decepção dos catastrofistas, o mundo não acabará dessa vez
Na tela da TV, apresentadores e entrevistados dissecam em tom funéreo a possibilidade de os Estados Unidos anunciarem o calote de sua dívida. O canal Bloomberg adicionou drama ao exibir em sua tela um relógio com a contagem regressiva para a quebra: quatro dias, seis horas, dois minutos, nove segundos (oito, sete, seis). Analistas usam expressões tão leves quanto “episódio sem precedentes” e “catastrófico”. O horror, o horror, o horror.
Mas o mundo não acabará dessa vez. Se o Congresso não chegar a um consenso sobre a elevação do limite da dívida do país (atualmente de US$ 14,29 trilhões) até o dia 2 de agosto – e, assim, o calote for confirmado –, os EUA, que têm déficit orçamentário de US$ 1,5 trilhão, suspenderão o pagamento de suas obrigações. Os políticos têm alardeado o ineditismo dessa decisão e os mercados financeiros estão tensos com as consequências imprevisíveis, mas, em outras ocasiões, o default já ocorreu – e a vida seguiu.
Esse histórico esquecido de calotes norte-americanos começou em 1790. O país, ainda imberbe, tinha proclamado sua Constituição menos de três anos antes disso quando o recém-formado governo federal reestruturou os pagamentos dos bônus emitidos pelos Estados para financiar a guerra pela independência da Inglaterra. E foi um calote em obrigações internas e externas. “Os juros nominais foram mantidos em 6%, mas uma parte dos juros foi postergada por dez anos”, relatam Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff em “The forgotten history of domestic debt” (A história esquecida da dívida doméstica), trabalho feito para a National Bureau of Economic Research, entidade privada de pesquisa de temas econômicos criada há quase 100 anos.
A lista de defaults ganhou novo item em 1933, o primeiro ano de Franklin Delano Roosevelt na presidência dos EUA. As finanças do governo ainda tinham uma ligação íntima com o ouro – e isso era particularmente verdade no caso dos bônus emitidos para financiar a participação norte-americana na Primeira Guerra Mundial. Esses papéis tinham uma cláusula que permitia a seus detentores optar por receber o pagamento em moedas feitas do metal precioso.
Mas como aqueles eram os dias da Grande Depressão, o governo, com a anuência do Congresso, desvalorizou o dólar e, no dia 5 de junho daquele ano, também decidiu que a cláusula do ouro não era mais válida. Como o metal era uma garantia contra a desvalorização da moeda, e como, com aquele ato, ele não seria mais usado pelo governo para honrar seus débitos, na prática, a desvalorização da moeda faria com que os detentores dos bônus recebessem menos dinheiro por esses documentos do que eles efetivamente valiam. Ações na Justiça contra a decisão chegaram à Suprema Corte, que, por cinco votos a quatro, ratificou a medida do governo. Estava decretada a moratória.
O ano de 1979 teve um quase-calote. A exemplo do que ocorre hoje, o Congresso demorou para votar a elevação do teto da dívida para US$ 830 bilhões. A proposta foi aprovada, mas não a tempo de o governo emitir cheques para todos os seus credores. Com isso, foram adiados os pagamentos que totalizavam US$ 122 milhões a investidores com títulos que venceriam em 26 de abril, 3 e 10 de maio daquele ano. O episódio foi considerado pelo Tesouro dos EUA não um calote (ainda que momentâneo), mas um problema técnico.
Franklin Roosevelt, presidente dos EUA na moratória de 1933:
devo, não nego, mas não pago em ouro
Calote federal, calote estadual
Houve ainda ocasiões em que Estados dos EUA deram calote. Entre 1841 e 1842, nove deles o fizeram. Depois, entre 1873 e 1884, nos recessivos anos pós-Guerra Civil, foram dez os caloteiros. No caso de West Virginia, um dos dez dessa lista, a liquidação das obrigações só ocorreria em 1919.
Há quem prefira dizer que os episódios passados seriam casos de “default técnico” e não têm a mesma dramaticidade da ameaça atual de moratória. Em 1790, a ação, orquestrada pelo secretário do Tesouro Alexander Hamilton, teria sido menos um calote e mais uma reestruturação de dívida, afirmam alguns pesquisadores. E, em 1933, os EUA postergaram unilateralmente suas obrigações, mas os pagamentos acabariam sendo feitos – ainda que não nos termos originalmente acordados.
Mas não havia, de qualquer forma, garantia de que os compromissos seriam honrados depois dos calotes (ou “defaults técnicos”). Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff (professor em Harvard e ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional) atestam as moratórias no livro Desta vez é diferente: oito séculos de loucura financeira, de 2010.
“Contrair dívidas será quase que infalivelmente uma ação a ser tomada de forma abusiva pelos governos”, foi o que disse o filósofo David Hume há quase 250 anos no ensaio “Sobre o crédito público”. Endividar-se é da essência dos governos, atestou o escocês. Para os otimistas, há (como se vê) vida depois das moratórias. Para os pessimistas, o mundo vai acabar – mais uma vez.
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