Todo ano é a mesma coisa. O Ministério da Educação divulga os resultados do Enem por escola, os jornais montam os rankings de melhores e piores e diretores de colégios se lançam num recorrente bate-boca em que um acusa os truquezinhos utilizados pelo outro para inflar as notas médias e todos se queixam dos critérios utilizados para estabelecer a pontuação.
São questões legítimas, mas que às vezes me dão a impressão de passar ao largo do ponto central do debate. Pelo menos desde os anos 60, sociólogos, economistas e estatísticos tentam determinar o que chamam de "efeitos da escola". Numa tradução rude, tentam responder se a escola serve para alguma coisa --e a resposta tem sido mais negativa do que positiva.
Quem começou tudo foi o sociólogo James Samuel Coleman (1926-1995), que, a pedido do governo dos EUA, analisou dados de centenas de milhares de estudantes e professores e publicou em 1966 um relatório de mais de 700 páginas que mudaria para sempre o paradigma dos estudos educacionais. No que provavelmente é o maior achado do ªColeman Reportº, o autor mostrou que a extração familiar e a condição socioeconômica do estudante eram fatores muito mais importantes para explicar seu sucesso (ou fracasso) do que variáveis mais específicas como a qualidade dos professores, o gasto médio por aluno etc.
O trabalho de Coleman também revelou que jovens negros pobres se beneficiavam de estudar em instituições com garotos brancos de classe média, no que foi a justificativa pedagógica para a política de dessegregação racial das escolas americanas no final dos anos 60, mas essa é outra história.
De lá para cá, inúmeras pesquisas confirmaram o enorme peso das variáveis família e status socioeconômico, a ponto de alguns estudiosos chegarem muito perto de afirmar que matricular seu filho nas melhores escolas é irrelevante.
Um exemplar fresquinho dessa linha é o artigo "The Elite Illusion: Achievement Effects at Boston and New York Exam Schools" (a ilusão da elite: efeitos do êxito em escolas técnicas de Boston e Nova York), publicado em julho, no qual Atila Abdulkadiroglu (Duke University), Joshua Angrist e Parag Pathak (MIT) avaliaram o ambiente em torno de seis escolas públicas de elite em Nova York e Boston, as "exam schools". Elas são, se quisermos, o equivalente das nossas escolas técnicas. Trata-se de instituições públicas (gratuitas), mas que podem aplicar testes de seleção e ficar apenas com os melhores candidatos. Pais preocupados são capazes de matar para conseguir vagas para seus filhos numa delas. Alunos dessas escolas se saem bem melhor que a média dos estudantes em todas as avaliações a que são submetidos.
O trio de pesquisadores, porém, mostrou que é muito provável que o nível de excelência dessas instituições não passe de uma ilusão cognitiva, daquelas que nossos cérebros são afoitos por cair. Para prová-lo, eles se valeram de um quase-experimento natural. Saíram em busca dos alunos que por muito pouco não conseguiram entrar numa dessas ªexam schoolsº e tiveram de contentar-se em colégios normais. Depois, viram como esses estudantes foram no SAT (o Enem norte-americano) e constataram que não houve diferença na performance desse grupo e no dos que obtiveram um lugar nessas instituições de elite.
A conclusão fica um pouco menos contra-intuitiva se a colocarmos nos seguintes termos: alunos brilhantes se saem bem nas provas não importando muito qual escola tenham frequentado. Em alguma medida esses achados valem também para o nosso Enem. Colégios que reúnem um público de elite acabam ficando com a fama de competentes. Só que, como sabemos desde Coleman, esse efeito se deve em grande parte ao fato de eles conseguirem juntar alunos bem nutridos e com pais donos de gordas contas bancárias. Um modo eficaz de melhorar o desempenho no Enem é elevar o valor da mensalidade.
Se a essa altura você, endividado leitor, já está pensando no que vai fazer com o dinheiro que economizará depois que transferir seu filho da cara escola privada para a pública, valem alguns alertas hermenêuticos. Essas conclusões só valem para alunos excepcionais. Se o seu rebento estiver na faixa mediana ou abaixo dela, ele provavelmente se beneficiará de estudar com alunos mais preparados. Foi o que o próprio Coleman concluiu em relação aos negros nos anos 60. Além disso, é sempre bom lembrar que a escola não é apenas ensino. Quando você escolhe qual colégio ele fará, já está de alguma forma selecionando quais serão os seus amigos (que exercem grande influência e não apenas educacional) e qual a rede de relacionamentos da que ele fará parte (outro ponto importante quando se analisa o sucesso profissional). Antes, porém, de concluir que as escolas estão mais para clubes do que para instituições de ensino, proponho-me a mexer num vespeiro ainda mais perigoso que é o da genética comportamental.
Como não conseguimos vislumbrar uma relação causal direta entre dinheiro e bom desempenho em provas (não se imagina que os alunos subornem os examinadores), precisamos buscar explicações verossímeis em outro lugar. Uma corrente de pesquisadores afirma que a resposta está pelo menos parcialmente nos genes. A inteligência, ou a esperteza ou o talento para os negócios e para acertar questões em testes estão correlacionados e são em alguma medida hereditários.
Afirmações desse gênero são receita infalível para uma boa polêmica. Mas quem tiver paciência para olhar as evidências invariavelmente leva um susto. Por evidências aqui refiro-me aos estudos com gêmeos idênticos (que partilham 100% do material genético e muito do ambiente) e com crianças adotadas (que partilham com irmãos de criação algo do ambiente e nada do material genético). Aplicando um pouco de estatística a essas bases de dados, que, no caso de países nórdicos, começaram a ser coletadas no final do século 19, é possível eleger uma característica qualquer e calcular o efeito que têm sobre ela a natureza (genes), o ambiente compartilhado (criação) e o ambiente não compartilhado (uma nuvem de mistério que inclui as forças do acaso, mas que ninguém sabe direito como interpretar).
Diferentemente do que sugeriria o senso comum, que atribui grande valor a noções como criação e ensino, a natureza vence com folga o ambiente compartilhado na maioria das características que os pais desejam para seus filhos. (É importante observar que esses trabalhos foram todos feitos em países ricos; suas conclusões provavelmente valem para a classe média alta do Brasil, mas decerto não para o conjunto da população). O peso dessas evidências é tanto que mesmo um autor tido como campeão do antideterminismo, sir Michael Rutter (na polêmica da educação ele sustentou que a escola tem, sim, efeitos) reconhece sua importância. Em "Genes and Behavior: Nature-Nurture Interplay Explained" (genes e comportamento: a relação entre natureza e criação explicada), sir Michael escreve a propósito dos estudos com gêmeos e adotados: "Qualquer crítico desapaixonado terá de concluir que a evidência em favor de uma importante influência genética sobre diferenças individuais é inegável".
É claro que também há provocadores como Brian Caplan, autor de "Selfish Reasons to have More Kids" (razões egoístas para ter mais filhos), que sustenta que pais exercem muito pouca influência sobre o futuro dos filhos e que, por isso, em vez de ficar martirizando-se com cuidados e preocupações desnecessários, é melhor relaxar e ªaproveitar a jornada. Desde que seu rebento não seja submetido a maus-tratos na primeira infância nem passe por privações de padrão africano, ele provavelmente atingirá todo seu potencial genético.
Caplan vasculha os estudos com gêmeos e adotados para concluir que criação não influencia a inteligência, a felicidade nem o sucesso profissional dos filhos, assim como não determina longevidade, altura, peso e nem a saúde bucal. Para não dizer que nós, pais, não precisamos fazer nada, os números mostram que podemos ter um pequeno efeito sobre o consumo de tabaco, álcool e drogas.
É claro que o autor está aqui considerando apenas o longo prazo. É mais provável que seu filho tire "A" em matemática se você obrigá-lo a estudar do que se deixá-lo brincar no computador. Mas, se olharmos para os efeitos duradouros, para além do ano letivo e do vestibular, o peso da criação fica bem menor.
Como diz Caplan, virou lugar-comum comparar crianças a barro, que os pais precisam moldar com a educação. Uma imagem mais adequada seria plástico. Ele se dobra quando o pressionamos, mas logo volta à posição original.
A julgar por Rutter e outros autores mais parcimoniosos, há um quê de exagero no retrato pintado por Caplan --em especial quando sugere que é inútil mandar as crianças escovar os dentes--, mas ele não está muito longe da verdade quando afirma que nós nos preocupamos demais e tentamos manipular em nosso favor variáveis que muito provavelmente não passam de ilusões, como os rankings do Enem e o valor de um currículo extenso.
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