Quarta maior cidade do país concentra opositores e representa um dos maiores desafios para o governo, que não consegue retomar controle
Na cidade síria de Hama, que ostenta as cicatrizes de um dos episódios mais sangrentos do Oriente Médio moderno, a revolta contra o presidente Bashar al-Assad começa a ajudar os sírios a imaginar como pode ser a vida após a ditadura, e faz isso ao forjar novos líderes, organizar a sua própria defesa e lidar com um passado sombrio como escudo em um experimento que demonstra as forças que poderiam colocar fim ao governo do atual presidente.
Dezenas de barricadas de latas de lixo, postes de iluminação pública, caminhões e sacos de areia, defendidos em vários estados de vigilância, impedem o retorno das temidas forças de segurançaque, surpreendentemente, deixaram a área no mês passado. Protestos começam à meia-noite, atraindo multidões de jovens barulhentos que celebram o simples fato de poder protestar.
Ao anoitecer, gritos distantes ecoam nos blocos de concreto e pedra que formam um memorial de júbilo e medo em homenagem à uma repressão que aconteceu uma geração atrás e custou a vida de 10 mil, 20 mil ou mais pessoas – o número exato continua a ser um palpite. "Hama é livre e permanecerá livre", cantam os manifestantes.
Foto: NYT
Manifestantes contrários ao governo protestam no centro de Hama, na Síria
Liberdade é uma palavra ouvida com frequência atualmente na cidade que é a quarta maior da Síria, apesar de a liberdade ser algo indescritível no país árabe. Hama se rebelou no mês passado e o governo retirou soldados e forças de segurança da cidade aparentemente para evitar derramamento de sangue ao londo do Rio Orontes, que não foi realmente libertado ou subjugado.
Em meio à incerteza, pontuada pela preocupação de que as forças de segurança podem retornar e o medo de que tenha deixado informantes para trás, Hama surgiu como um modelo turbulento do que uma cidade síria pode ser caso essa ditadura de quatro décadas chegue ao fim. Nas ruas, há pelo menos noções de determinação, perceptíceis conforme os moradores optam por falar por por si mesmos e defender uma cidade que declaram ser sua.
A única imagem de Assad na cidade foi colocada na sede não danificada do governista Partido Baath. Moradores se reúnem na calçada para debater a política, cantar canções de protesto e recontar os traumas da repressão de 1982, quando o governo invadiu Hama para acabar com uma insurreição islâmica. Pela primeira vez, os clérigos e a elite educada de Hama estão negociando com o governador para determinar como a cidade será administrada, num país mais habituado a um monólogo proferido pelo governante para os governados.
"É assim que deve ser uma cidade", disse um ex-funcionário do governo de 49 anos que disse se chamar Abu Muhammad.
Desafio
Cercada por eucaliptos, a estrada para Hama ressalta a profundidade do desafio de Assad. Tanques estão estacionados dentro de Homs, ao sul da cidade. Mais estão estacionados nas entradas para as cidades menores entre Homs e Hama, como Talbiseh e Rastan, onde os manifestantes desmantelaram uma estátua do pai de Assad, Hafez, que tomou o poder em 1970. Em uma entrada, cheia de pedras atiradas por manifestantes, um slogan diz: "O Exército e as pessoas são uma mão”. Mas os soldados nervosos atrás de sacos de areia e tanques apontados para o tráfego de entrada sugerem um exército de ocupação. "A Síria é colonizada pelos seus próprios filhos", brincou um morador da cidade.
Hama está se preparando para um ataque de um governo que pode se arrepender da decisão de retirar suas tropas na primeira semana de junho, depois de uma sexta-feira especialmente sangrenta. Mas as autoridades parecem incertas sobre como retomar o controle da cidade rebelde que é a mais conservadora em termos de religião do país. Cercas foram demolidas e as pedras das calçadas desenterradas para a construção de dezenas de barricadas, que bloqueiam entradas para a maioria dos bairros. O lixo se acumula ao longo das ruas onde cada lixeira parece parte de uma barricada.
Jovens distribuíram sacos de pedras nos postos de controle e alguns, tão jovens que nem sequer precisam fazer a barba, carregam barras e paus. Outros fumam cigarros, longe dos olhares de desaprovação de seus pais. Um banner na Praça Jerajmeh parecia argumentar o seu caso: "Aqui é Hama. Não é Tel Aviv", uma referência ao inimigo declarado da Síria, Israel.
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Grafite diz “O povo quer a queda do regime”, em muro da cidade síria de Hama
"Claro, sabemos que o regime pode entrar na cidade a qualquer momento", disse um carpinteiro de 30 anos de idade, com cavanhaque e olhos azuis, que disse se chamar Abdel-Razzaq, ao dar de ombros a respeito da perspectiva. "A batalha acontecerá. O que podemos fazer a respeito disso?", disse.
Até mesmo enquanto os manifestantes celebram a liberdade de Hama, os moradores de outros lugares já se perguntam o que motivou o governo a retirar suas forças da cidade. Alguns sugerem a pressão externa, outros apontam para a demografia de Hama. Ao contrário de Homs, Hama não tem minoria alauita, seita heterodoxa muçulmana onde a liderança do país consegue o seu apoio. A pequena população cristã da cidade parece cautelosa, mas despreocupada.
Passado
Mas a maioria acredita que o segredo está no passado de Hama, citando um refrão ouvido quase o tempo todo quando o nome da cidade é mencionado. "Hama foi ferida".
Sob as ordens de Hafez Assad, o Exército sírio reprimiu a revolta em 1982 com uma brutalidade que posteriormente definiu o seu governo. A repressão acabou com a rebelião, mas a ferocidade mudou para sempre sua liderança, gerando uma desconfiança e paranoia que ainda dominam a política da família. As três semanas de combates também deixaram para trás um cemitério na cidade. Aviões bombardearam o bairro histórico de Hama e tanques percorreram as ruas estreitas. Em um frenesi à favor da morte, execuções em massa se tornaram rotina, assim como a tortura de sobreviventes. "Hama é o cemitério da nação", dizem os grafites espalhados pela cidade.
"Toda casa tem os seus mártires", disse Adnan, um engenheiro de petróleo de 25 anos de idade. Outros se juntaram a ele, sentados em cadeiras de plástico na calçada, tomando chá.
Dezessete pessoas morreram em sua rua, batizada em homenagem a Mustafa al-Sheik Hamid, segundo Adnan e outros. Muitas das crianças que jogavam futebol nas proximidades foram homenageadas com os nomes dos mortos. Uma se lembrou de seu tio Mahmoud, que foi baleado 24 vezes e sobreviveu, apesar das muitas sequelas. "Ele parecia uma peneira", disse ele. Um farmacêutico disse que nunca viu seu primo, Othman, novamente.
"Seus filhos e netos estão fazendo os protestos de hoje", disse Abu Muhammad, funcionário do antigo governo.
Protestos
Desde que o governo retirou as suas forças, os protestos acontecem às sextas-feiras na Praça Assi – rebatizada de Praça dos Mártires – e têm crescido tão rapidamente quanto o medo esvanece entre a população, chegando a mais de 100 mil pessoas neste mês. Canções com títulos como "Fora Bashar" têm sido cantadas por manifestantes em outras cidades e se tornaram uma sensação no YouTube.
Na Praça Presidente, o governo desmantelou uma estátua de Hafez Assad no dia 10 de junho. No dia seguinte, os moradores lembram, um homem apelidado de Gilamo colocou seu jumento no pedestal. Centenas se reuniram, batendo palmas, em uma clara zombaria à subserviência.
"Oh, juventude de Damasco, nós em Hama derrubamos o regime", cantaram os moradores. "Nós removemos Hafez, e nós colocamos um burro em seu lugar".
Vários moradores disseram que as forças de segurança executaram o burro alguns dias depois.
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Ativistas opositores se reúnem em Hama, a quarta maior cidade da Síria
Com o vácuo de poder, novos líderes começaram a surgir, por vezes coexistindo desconfortavelmente em uma cidade que parece tatear o desconhecido. Jovens manifestantes se uniram em um grupo chamado Os Livres de Hama, mas formam um nome mais do que uma organização. Seu trabalho verdadeiro, dizem os ativistas, acontece em seus próprios bairros, onde organizam turnos para defender as barricadas, persuadir as mães a cozinhar abóbora recheada para os seus amigos e documentam implacavelmente a revolta com câmeras, celulares e filmadoras.
Nenhum membro das forças de segurança pode chegar perto, eles declaram, sem que suas ruas soem um alarme, em uma erupção de gritos de "Deus é Grande", um coro acompanhado por uma cacofonia gerada por panelas e frigideiras umas contra as outras. "O medo foi destruído", disse Adnan, um dos líderes do protesto.
Os manifestantes, no entanto, têm pouca influência no governo, que negociou com a cidade de maneira surpreendente. Atualmente, Hama é representada por Mustafa Abdel-Rahman, clérigo de 60 anos no comando da Mesquita Serjawi. Os moradores da cidade dizem que ele consulta os fiéis de sua mesquita, junto com médicos, advogados e engenheiros dos bairros, sobre mais maneiras para aliviar a tensão. De acordo com o último acordo, o governo concordou em libertar prisioneiros, caso os manifestantes desmantelassem as barricadas nas ruas principais. Os manifestantes fizeram isso, embora, no final, apenas uma fração dos mais de 1,2 mil presos tenham sido libertados.
"Eles com certeza vão continuar a levar as pessoas", disse Tarek, um manifestante de 22 anos de idade. "Nós não podemos confiar. Simplesmente não podemos confiar mais neles mais”.
Microcosmo
Ao longo de seis semanas, Hama tem, de certa forma, emergido como um microcosmo da revolta – o que os manifestantes veem como libertação e o governo rotula como caos.
Como em outros lugares, o governo tem falado de gangues armadas e islâmicos vagando pelas ruas da cidade, embora em dois dias nenhuma arma tenha sido vista na cidade, além de um estilingue. Os islâmicos fazem parte dos protestos, talvez em maioria, e segundo algumas estimativas um quarto da cidade fugiu, temendo um confronto. O governo tem falado sobre perder o controle, embora a cidade ainda funcione. As lojas voltaram a abrir, as pessoas andam pelas ruas, e a administração municipal – das cortes à coleta de lixo – retomou o trabalhar após uma greve de duas semanas.
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Manifestantes em Hama pedem saída de Bashar al-Assad do poder
Jardineiros têm regado as praças da cidade e os carros obedecem aos sinais de trânsito ao longo das ruas onde nem mesmo um edifício único do governo foi danificado, além de algumas janelas quebradas. Embora as forças de segurança tenham desaparecido – todos os 16 ramos dela, pela contagem de alguns moradores – a polícia de trânsito ainda trabalha. "Você não se sente seguro a menos que as forças de segurança tenham partido", disse Abu Muhammad.
Mas episódios de ilegalidade e vingança têm pontuado a experiência da cidade. Um informante foi enforcado em um poste de eletricidade no mês passado, os corpos de três ou quatro outros foram jogados no rio Orontes, dizem os moradores. Há uma semana, três carros coreanos foram roubados de uma concessionária, disseram moradores e alguns empresários se queixaram das barricadas e de uma greve de duas semanas que desligou Hama. Muitos desaprovam o desmantelamento dos postes de iluminação de rua e de outras infra-estruturas para a construção das barricadas.
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"Não houve destruição com os protestos, por que tem de haver com as barricadas?", perguntou um comerciante de 40 anos de idade, que disse se chamar Ahmed. "Sem dúvida, as pessoas estão com raiva. Eu estou. Há bandidos por aí, sem dúvida”. Ele parecia ter uma opinião minoritária.
As cenas na noite de um sábado recente foram mais festivas do que caóticas, conforme multidões saíram às ruas para assistir a um protesto espontâneo celebrando a liberdade dos poucos prisioneiros libertados. Os manifestantes seguiram para o prédio do governador, ainda adornado com o slogan "A Síria é de Assad."
Por volta de meia-noite, um manifestante chamado Obada reuniu seus amigos no que parecia ser um cruzamento entre uma república estudantil e uma casa para ex-prisioneiros. Brasas ardiam no canto da sala, perto de computadores, fones de ouvido, uma televisão de tela plana, um scanner, equipamentos de mixagem de som e pilhas de CDs documentando os protestos, as prisões e os confrontos com as forças de segurança.
Cada um celebrou o que significava a revolta à sua maneira.
"Não há medo", disse Mustafa, 27 anos.
"Você pode andar nas ruas com segurança", acrescentou seu amigo, Mahmoud.
"Nos unimos mais", palpitou Fadi, digitando em seu computador.
Outro amigo, Bassem, balançou a cabeça. “Nós não estamos livres ainda", disse.
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