Mais de um terço das crianças a bordo morreram no naufrágio; mas não as da primeira e segunda classe
Continuam os distúrbios em Londres e certas partes do país. Não estão quebrando nada, peitando policiais, roubando ou tacando fogo. Apenas as perigosas e loquazes mesas-redondas e comissões de inquérito, oficiais e extra-oficiais, discutindo o que houve, não houve e como não conseguir chegar a qualquer conclusão a respeito.
Haja série americana sobre serial killers. Não há. Agosto, verão, e as autoridades televisivas decidiram que o melhor é enfocar o máximo possível tudo e qualquer coisa que tiver a ver com 2012 e as terríveis Olimpíadas.
Um ano de comerciais, promoções e chatices destinadas a não perder os turistas que, até os distúrbios recentes, planejavam passar agosto do ano que vem por aqui vendo, e possivelmente rindo muito, de ingleses quebrando a cara nas mais esotéricas competições.
Até o handball é assunto para entrevistas e mesas-redondas: esporte ou não? Merece inclusão? E sempre um locutor, munido de gráficos, slides e filezinhos, mostrando a beleza dessa bobagem que nunca passou pela cabeça, ou, no caso, mãos, de qualquer grego.
Fosse eu um pouquinho mais paranóico e diria que o objetivo dos Jogos Olímpicos de 2012 passou a ser solução para os graves acontecimentos recentes e desesperadoras perspectivas de remédio para as comunidades destituídas ou apenas formada - abramos o jogo - de minorias étnicas sem muito o que fazer na vida, sem dela ter muito o que esperar.
Isso aí. Infelizmente. Sou pessimista, não vejo solução. Apenas panos quentes ou mornos e não há de ser a contratação (está sendo ventilada) de um super-policial americano, talvez um Capitão América na hora do pau comer, que venha a solucionar as coisas.
Assim sendo, vou com a maré. Mandem desastres que eu traço.
Mantendo uma razoável distância da TV, pelos motivos já enumerados, estou lendo mais do que o comum, que, de uns tempos para cá, vinha sendo pouco. Escolhi livros de memórias e biografias, gêneros em que, juntamente com o obituário, os ingleses garantem medalhas de ouro.
Também achei conveniente entrar, assim meio de banda (já vou falar mais nela), na literatura de grandes deastres. Para manter o tom.
Ano que vem, o 2012 olímpico marcará também o centenário do naufrágio do Titanic. Estou lendo, fascinado, no momento, "How to survive the Titanic" (Como sobreviver ao Titanic), que leva o subtítulo de "O afundamento de J. Bruce Ismay", da autoria de Frances Wilson.
Do lado, aguardando a vez de se jogar nas águas geladas e revoltas de minha mente conturbada, And the band played on (E a banda continuou a tocar), de Christopher Ward, este focalizando em close-up a célebre bandinha de bordo que não abandonou posto ou instrumento, afundando junto com o navio, sempre a tocar e a tocar.
Impressionante a história do Titanic. Mais terrível até do que Leonardo de Caprio berrando da proa ser "rei do mundo".
Vamos por etapas. Quem foi J. Bruce Ismay? Apenas o diretor da White Star Line, que, em abril de 1912, nos deu o Titanic, e este, por sua vez, deu um esbarrão feio num iceberg, o que levou à morte 1500 de seus 2.223 passageiros.
Ismay salvou-se pegando um lugar num dos barcos salva-vidas, deixando assim que morressem dois terços dos passageiros do navio de sua propriedade e que ele mesmo ajudara a construir e projetar.
Fora Ismay também o responsável pela retirada, antes do embarque, de 16 dos barcos salva-vidas do magnífico transatlântico. Não o fizesse, talvez se salvassem todos, e não apenas a gente fina da primeira e segunda classe.
Poucos sabem, no entanto, que a British Board of Trade (a Junta Comercial Britânica), órgão responsável por essas miudezas, achava que 16 barcos salva-vidas eram suficientes para uma eventualidade.
Tem mais, muito mais. Apesar do destaque dado à frase "Mulheres e crianças primeiro!", isso não passou de lenda. Mais de um terço das crianças a bordo morreram no naufrágio. Mas não as crianças da primeira e segunda classe: todas elas se salvaram. E dos adultos que sucumbiram, 140 de 154, viajavam de segunda classe.
É dado que não acaba mais, todos revirando as versões que conhecemos de cinema.
Por exemplo, o senhor Andrew Hume não havia pago pelo uniforme de seu filho, que tocava na bandinha que sucumbira tocando o hino Abide With Me entre outros. Não teve por onde. Recebeu a continha. Mandou para o equivalente ao sindicato de músicos da época. Que prontamente a publicou em seu jornal.
E os inesperados, para quem viu Tottenham arder: 30 mil pessoas foram às ruas das cidades de Colne, em Lancashire, para o enterro do maestro Wallace Hartley, que com o resto dos músicos, nunca é demais repetir, tocou e regeu como um herói até a super-embarcação ir ter às profundas do mar.
Recomendo a leitura, a tradução, o que for. Dos dois livros.
Encerro com um pequeno dado que Kate Winslett, pelada ou vestida, posando ou não para quadro e câmera, deve desconhecer: o pai de Jock Hume, um sobrevivente da segunda classe do navio, recebeu a conta de 5 xelins e 4 pence, quantia a que, segundo os administradores da White Star, correspondia ao preço do uniforme perdido por seu filho na tragédia. Jock Hume, por falar nisso, teve seu salário retido a partir do momento em que o Titanic naufragou, ou seja, às 2h20 daquela madrugada de abril, e o que ele ganhava não dava para cobrir o preço dos botões de bronze da túnica que a linha de navegação lhe cedera para cumprir suas funções de músico de bordo.
No mar, no céu, na terra, ali na esquina, há sempre motivo para se desesperar e desistir da humanidade.
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